Por Ana Lígia Corrêa
“Escola de samba não é nada surrealista”, penso eu ao acompanhar o início da apresentação da peça de teatro às 20h de sábado, dia 31 de março, ali mesmo na calçada próxima a entrada do Teatro Municipal. Descendo a esquina da Avenida Nações Unidas, chamando a atenção de carros e pedestres, a equipe escola de samba 100% Arte, batuca e dança enquanto alguns seres estranhos e alegóricos desfilam no meio da criançada de uniforme brilhante. Um menino que parece pássaro fica meio perdido, um estranho de pé de pato anda em movimentos marcados e a moça de vermelho chama a atenção com bandeira e apito. O começo é isso.
A apresentação, que invade teatro adentro, é algo ritmado, treinado, bem diferente da proposta do surrealismo, em usar o inconsciente e o irreal. Mas esse “pré-conceito” logo cai, e penso que o batuque (aquele mais simples mesmo, em que tampas de panela viram música) é algo que a gente aprende e pratica fácil porque, como muitos poetas dizem por aí, se assemelha às batidas do coração. E essas batidas fortes são capazes de provocar certo misto de alegria e bem-estar, como num sonho. E aquilo que parece muito real e milimetricamente planejado, na verdade é leve e solto como o pensamento humano e chega a ser um pouco irracional também, tamanha a rapidez com que os jovenzinhos batem em seus instrumentos. Coisas que só vendo e sentindo pra saber.
Já no palco os artistas entram, aplaudem e dão início ao hino tema da peça “nós somos surrealistas”. Começo a anotar a sequência da apresentação por que não estou acostumada a fazer cobertura de peças de teatro. Assim, posso me orientar e seguir uma sequencia lógica para, depois, descrever as impressões, tecer as críticas e escrever o que mais for pertinente.
Vozes ecoam ao fundo e, junto com um fundo musical tênue, os personagens são apresentados. O Salvador Dalí, o René Magritte, o Max Ernst, a Gala e a Dama Surrealista nos acompanharão pelas próximas duas horas. Há uma primeira cena tensa, profunda e com luz forte, acesa por um fósforo gigante. Logo em seguida, um diálogo engraçado de duas velhas loucas. O cenário fica vazio e nos é apresentado uma dança maluca de duas bailarinas muito brancas e saltitantes e não se sabe se elas estão felizes ou tristes...
Mas, anotar as sensações estranhas e felizes que aquilo me despertava - porque eu precisava tentar interpretar o que acontecia no palco - começou a atrapalhar o verdadeiro sentido (acredito eu) do projeto proposto: desprender-se do real, da lógica, se aproximar do que é abstrato e ir além da consciência cotidiana, cheia de amarras e toda quadradinha. Precisei, pelo menos nesse momento, ser mais livre e deixar me levar pelo que eu sentia. E, na hora de escrever o texto, lembrar, daquilo que o inconsciente me permitir trazer ao consciente.
Mas, anotar as sensações estranhas e felizes que aquilo me despertava - porque eu precisava tentar interpretar o que acontecia no palco - começou a atrapalhar o verdadeiro sentido (acredito eu) do projeto proposto: desprender-se do real, da lógica, se aproximar do que é abstrato e ir além da consciência cotidiana, cheia de amarras e toda quadradinha. Precisei, pelo menos nesse momento, ser mais livre e deixar me levar pelo que eu sentia. E, na hora de escrever o texto, lembrar, daquilo que o inconsciente me permitir trazer ao consciente.
Assim, seguiu-se uma miscelânea de alegria, de riso, de cômico, e do que pode ser engraçado no exagero, como esses programas de auditório que nos premiam com “um milhão de surreais” cada vez que alguém da a sorte de ligar e ser atendido pelos apresentadores charmosos e simpáticos. Ou quando a gente vai ser feliz, indo à praia de perucas coloridas, salto alto e levando um grande isopor, por exemplo.
Claro que nesse misto de cenas com risadas da plateia, existiram os momentos tensos, profundos e angustiantes, como quando aquela luz que fica em nossa cabeça (a luz da razão talvez?) começa a piscar de maneira tão intermitente e rápida, que o melhor a fazer talvez seja desligá-la e tentar recomeçar, tentando o desprendimento ou o abandono do que não foi bom, ou apenas consertando a pilha ou o fio que liga essa lâmpada chamada consciência.
Farinha, água, gritos, guache, ovo quebrado e a morte estavam lá, como tudo que nos cerca na realidade ou no imaginário, formando uma bela receita de um pavê surrealista.
Farinha, água, gritos, guache, ovo quebrado e a morte estavam lá, como tudo que nos cerca na realidade ou no imaginário, formando uma bela receita de um pavê surrealista.
A verdade é que foi uma grande alternância entre a tragédia X comédia, o real X imaginário, a vida X a morte. Mas, mesmo sendo paradoxos eles se interligavam de tal maneira que não se percebia onde terminava uma manifestação e onde começava outra. Porque um berrante não é só um berrante, ele pode ser a dor eufórica de alguém ou a alegria angustiante de várias pessoas.
E a proposta de um grupo de artistas locais em adaptar o movimento surrealista em uma versão brazuca-bauruense, que durou mais de dois anos para ser realizada entre ensaio e preparação, é prova de que a gente pode ser e fazer aquilo que a gente quer, basta deixar a mente aberta e ser um pouco assim surreal.
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