Por Pablo Marques
Fotos: Renan Simão
Conheci Lourenço Mutarelli por meio da minha professora de História da Arte, Lucimar Mutarelli. Uma simpática e inteligente professora que tentava ensinar Arte e Cultura em uma escola que conseguia enxergar apenas clientes e os grandes vestibulares no final do ano. Lembro-me do dia em que fui visitá-la pela primeira vez. Nunca tinha ido à casa de uma professora minha muito menos de um artista.
Quando toquei a companhia, quem atendeu foi Lourenço, com sua tradicional camisa xadrez de flanela e uma cafeteira italiana na mão. Ao entrar, uma casa muito aconchegante. Dois sofás, uma poltrona, um gato, muitos livros e uma parede repleta de quadros com desenhos dele ou de amigos. Foi nesse local que comecei a conhecer o casal mais inteligente, culto e bem humorado que já tive contato.
Após seis anos, Lourenço retribuiu minha visita. O mais surreal é que há dois anos e meio atrás não imaginava que isso aconteceria na minha República, a Oásis, em Bauru, onde faço faculdade. Dessa vez fui eu quem abri a porta, os papeis se inverteram, mas os dois estão exatamente iguais. Com o único diferencial que na primeira vez eu ainda não era um universitário e ele ainda não era ator. Por sinal foram essas duas mudanças que favoreceram a visita. Ele veio participar de um debate organizado por um projeto, que eu participo na universidade, sobre o filme, no qual ele é o ator principal, “O Natimorto”.
A Visita
Abri o portão, ele me cumprimentou e entrou para a sala, enquanto eu trancava a porta já estava com uma peruca Black Power conversando com três dos oito moleques que moram comigo. Foi melhor assim, não queria que fosse nada formal essa visita. Servimos uma dose de uísque. Mostrei a parede na qual gostaria de ganhar um desenho de presente. Ele olhou o espaço escolheu uma caneta e em poucos minutos já existia um autorretrato, em tamanho real, na parede da minha casa. Após a pintura e uma homenagem para mim no balão da fala do desenho, sentamos para uma entrevista para o e-Colab. Na verdade uma conversa informal que seria gravada.
Não vou transcrever a entrevista, porque como uma boa conversa de bar, existem dilemas da vida que devem ficar apenas entre os presentes, mas contarei algumas das impressões que guardei na memória com um auxílio de um ponto ou outro que foi gravado, apenas para lembrar detalhes. Achei que escutar ou ver as gravações inteiras iria mais atrapalhar do que ajudar na construção desse texto. Ao som de Jazz sugestão do meu amigo, desde os tempos de cursinho, Pedro Cabral, e na companhia de Reydi Kamimura e Danilo Vinhote tentamos desvendar e entender Lourenço Mutarelli em duas horas, um maço e alguns goles.
A Conversa
Existe uma lenda que Lourenço Mutarelli não gosta de ser fotografado. Vai uma dica, caso algum fotógrafo esteja lendo esse texto: Não é que ele não goste. Ele apenas não é modelo de retrato, se a mão atrapalhou, se o sorriso não saiu, se os óculos refletiram... Apenas tente novamente. Não peça para ele voltar à posição que mais te agradou.
Acertado esse problema, começamos a conversar na sala de casa. Ele em uma engraçada poltrona de couro com o assento de chita e nós de frente para ele enquanto o Renan Simão produzia o conteúdo audiovisual. Logo de início, descobrimos qual foi um dos medos e um dos sonhos de Lourenço. O primeiro foi de perder o movimento da mão, quando teve uma tendinite provocada por excesso de trabalho. “Como estava na moda fazer seguro de bunda e outras partes do corpo eu resolvi fazer um seguro da minha mão também”. E o sonho... Esse é o mais legal que já escutei. Você pode imaginar que o sonho era material ou talvez um reconhecimento profissional ou a eternidade não... O sonho de Mutarelli era ter em uma de suas publicações um código de barra. A primeira vez que viu um foi em quadrinhos e livro importados, mas não sabia qual era a real função daquilo. Então, quando teve o sonho realizado, no fanzine “O Dobro de Cinco” chegou à conclusão que dali pra frente tudo seria lucro.
A produção de Mutarelli é muito intensa, exige exclusividade. Por isso, mal consegue ler, pois automaticamente começa a fazer uma análise e a leitura para de ser prazerosa. Quando inicia a construção de uma obra ele aplica uma técnica semelhante a que usa para a leitura. Se não fluir em alguns dias e ele perceber que está forçando desiste. Diz que todo seu trabalho começa como umas brasinha e precisa esperar um pouco para ver se incendeia. Ele escreve como se estivesse contando uma historia para ele mesmo, por isso essa semelhança entre o Mutarelli escritor e leitor.
Sua inspiração pode vir até mesmo de trabalhos anteriores. Uma vez encontrou nos seus caderninhos de desenho a frase: “A dor nunca passa, nós apenas nos acostumamos com ela”. E a partir disso surgiu o livro “Por que sinto tanto prazer pela dor?”. Então descobri a visão dele sobre a atividade de criar. Com frequência ele pega os seus desenhos e textos anteriores e fala “Puta... Que bosta!”, mas ele se consola pensando que era o que dava para fazer na época. Se não existia o domínio da técnica que ele gostaria, não teria como ficar melhor. Daí vem a um conselho: ”Se você sempre tentar chegar no que idealizou nunca vai realmente produzir alguma coisa. Então o jeito é continuar fazendo, porque nesse momento é o que você podia fazer. A Técnica é igual dominar um animal selvagem: você toma coice e tal, mas uma hora você começa a dominar e esse registro é importante”.
Lourenço é conhecido por sua estética do horror e do sujo. Essa forma de ver o mundo surgiu desde muito cedo. Filho de delegado, Lourenço aprendeu a ver beleza nas fotos das perícias e nos livros de Medicina Legal que encontrava na biblioteca do pai. Costumava debater alguns casos com ele também e assim ele diz: “Foi meu pai quem me mostrou o que é o mundo cão”. Ao ser questionado se os “dinossauros” dos quadrinhos teriam preconceitos com o trabalho dele por causa desses enredos às vezes mórbidos, ele afirma que não acredita ser esse o problema, mas o fato dos caras estarem consolidados no mercado já há dez anos quando ele surgiu. Confessa que ficou chateado por, como ele diz, sofrer bullying. Chegou a ser sacaneado ao pedirem para ele fazer e refazer uns quadrinhos durante um mês e nunca publicaram nada. Virou praticamente uma piada. Já recebeu até desculpas públicas, já dividiu mesas com eles, já publicou com alguns... Não guarda magoa, mas descobriu que quem passa por essas situações fica mal. Isso marcou o estilo de ser do artista.
Uma vez um dos seus chefes negou a ensinar o retoque americano, uma técnica de retoque fotográfico antecessor ao Photoshop, e a resposta foi: “Se vira nunca ninguém me ensinou nada!”. Hoje ele ensina tudo que sabe. Nas suas aulas e oficinas ele entrega os truques sem qualquer problema. “Acho importante abrir o caminho para quem está vindo”. Diz que ninguém ficou rico com os HQ’s todo mundo batalha muito ainda. “Para você ser quadrinista ou você tem dois empregos, ou uma mulher que trabalha. Então, porque não ajudar?”
Depois de muitas histórias e muitas risadas, faltava perguntar sobre dois elementos que para mim estão muito associados à figura de Lourenço Mutarelli.
Perguntei primeiro sobre a admiração pelos gatos. Hoje em sua casa vivem cinco gatos. Descobri que tudo começou com um ataque de um gato preto. Ele passava pela rua quando o gato se assustou e pulou nas suas costas, o feriu bastante. Ao contrário da maior das pessoas, ao invés de criar fobia, o ataque gerou fascínio. Por coincidência o primeiro animal de estimação que o seu filho teve foi um gato preto, o Nanquim, aquele gato que eu conheci na minha primeira visita, que foi seu xodó durante cinco anos. “O Nanquim até conversava comigo”.
A última pergunta foi sobre a sua mulher, Lucimar Mutarelli, e a resposta foi sucinta, mas clara: “Ela é a minha primeira leitora, uma das principais criticas e maior incentivadora do meu trabalho e que quando nós começamos namorar eu tinha certeza que era com ela que eu ia casar, tanto é que namoramos só três meses”.
A conversa foi muito produtiva regada a uísque e a nicotina. Se ele não tivesse um compromisso pela manhã e nós não tivéssemos produzido mais de 20 Gb de material, com certeza a conversa duraria ainda mais. Agora você pode falar: “Lourenço Mutarelli... Já ouvi falar desse maluco!”.
Agradeço ao Lourenço Mutarelli pela visita, pela entrevista e pelo desenho.
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