Ser TÃO na praça

31 de outubro de 2011
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Texto e Foto por Gabriela Passy

22/10
Praça da Paz, 19:30h

Eu estava chateada. Chateada com o clima, com a correria, com o meu cabelo. Chateada porque o meu lanche estava demorando pra sair. Porra, já fazia quanto tempo? Chateada também porque odeio comer sozinha. Sentada numa mesa da Praça da Paz, com os pés apoiados na cadeira em frente à minha.

Quando eu era criança, gostava de imaginar como as pessoas e os lugares eram antes de conhecê-los. Sempre errava. E agora, pelo menos dez anos depois, gosto de perceber como as pessoas e os lugares mudam depois que eu os conheço.

Mudança. Foi isso o que aconteceu na Praça da Paz naquela noite. Enquanto esperava pela minha janta, percebi uma movimentação diferente. Duas pessoas estavam dançando uma espécie de coreografia irlandesa no meio da praça. Davam pulinhos e rodavam soltando as pernas. Sem figurino, sem música, sem nada, só dançando. Pelo menos foi o que eu pensei que eles estivessem fazendo.

A dança irlandesa transformou-se num aquecimento teatral, um velho conhecido dos meus tempos de balé. Os caras eram do teatro, não da dança. A curiosidade quase escorria, líquida, pela minha pele. Nunca tinha visto nada parecido com aquilo. A Praça da Paz é lugar de comer lanche e comprar jogos pirateados, e não de assistir a uma peça de teatro.


Joguei os planos que tinha para cima; eu precisava ver aquela peça. Não sabia quem eram os atores, não sabia o nome da peça e muito menos o da companhia que a produzia. E de que isso importava? Era diferente, caramba. Era teatro de rua, dos tradicionais, daqueles que passam o chapéu no fim da apresentação, como eu viria a descobrir mais tarde.



20h

Histórias do sertão, água fervendo em um mini fogão. Um violão discreto fazendo o som ambiente. Algumas pessoas sentadas em cadeiras de plástico dispostas em forma de roda. Começa o riso de um, depois o de outro. É contagioso: de repente, todos estão sorrindo. O café fica pronto, e – quem diria – é servido para quem estivesse lá e quisesse. Eles olham nos olhos da gente. “Tava bom o café?”, pergunta a atriz que o fez.

Quem fica parado é poste. Com as malas nas costas, eles estão indo embora do sertão, e nós vamos junto com eles. Todos nós migramos em busca de uma vida melhor: é o sonho brasileiro. Os mais de mil quilômetros entre o nordeste e o sudeste são resumidos em alguns passos entre um lado e outro da praça.

Quando chegamos à cidade grande, a imensidão e as luzes nos assustaram. Acabamos alojados em terra de ninguém. Tentaram nos tirar de lá, mas fomos mais fortes. Construímos nossos barracos, nossas vidas. Vivíamos lá, trabalhávamos, ganhávamos os nossos humildes salários. Casávamos, fazíamos festas, chamávamos a galera pra dançar; tínhamos o nosso lugar. Somente alguns percebiam que, uma hora ou outra, seríamos forçados a desocupar a nossa terra.

De repente, uma ordem de despejo. Para todos, sem exceção.

Foi ao olhar para trás, para ver as ordens de despejo serem distribuídas, que eu percebi que a platéia tinha crescido. Bastante, mesmo. A galera estava curtindo; não eram obrigados a estarem ali, não tinham pagado por nada. Estavam ali porque se sentiram atraídos, porque gostaram do rolê, assim como aconteceu comigo.


Eu vi Se esta rua fosse minha, Uma casa muito engraçada e Se você pensa que cachaça é água virarem música de protesto. Eu vi a crítica social sendo vomitada pelas bocas dos atores. Eu vi as gerações de migração do sertão para o sudeste, e vi também as populações das favelas e das COABs. Vi a Praça da Paz se transformando em palco para tudo isso. Eu vi os olhos das crianças, com bexigas nas mãos, brilhando ao ver a arte tão de perto. E acho que elas viram os meus olhos brilharem também.


Nota:
Foi só no último minuto da peça que descobri que quem fez da minha noite diferente foi o grupo de teatro de rua Buraco D’Oráculo, de São Paulo. A peça foi baseada em histórias reais, relatadas por moradores de favelas. O nome? “Ser TÃO Ser – Narrativas da outra margem”, e não consigo pensar num outro que fosse melhor do que esse para uma peça tão... Marginal.

“Se o povo soubesse o valor que ele tem, não aceitava desaforo de ninguém”.

  1. Olá,

    Assim,como ficou surpresa por encontrar um espetáculo na praça, meses depois nos deparamos com o seu comentário/crítica e ficamos surpresos, pois foi espontâneo, como costuma ser a maior parte do público de rua.

    Obrigado!

    Se quiser saber mais do grupo? Acesse www.buracodoraculo.blogspot.com ou www.buracodoraculo.com.br

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