Pintando com som em BH

6 de julho de 2012
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Foto de Martin Klimas


Por Renan Simão

Galpão velho no bairro Jardim América, zona oeste de Belo Horizonte. São oito e meia da manhã de segunda-feira e chego para assistir um ensaio de banda. Sabe como é, estou de férias, um amigo fala pra ver um ensaio dele, vamo lá.

Bem devagar, cada um toma o seu lugar no pátio do galpão que também é utlizado como sede do Trampulim, centro cultural do bairro. Uma moça, negra, bonita, de blusinha rosa-choque, cabelo molhado, está tomando seu cafe e escutando Adele, desinteressada na arrumação dos instrumentos. Cumprimento todo mundo e vejo um grosso livro marrom, cheio de anotações coloridas e com um nome em destaque: soundpainting.

Em parte composta pela banda Dibigode (que, aliás, já passou por Bauru), os músicos ficam a postos em forma de circulo: bateria, percussão, contrabaixo, teclado e guitarra. Mas há um púlpito fechando o círculo, é o do regente do ensaio, Guilherme Big, que também tem um sax à mão. Como se fosse uma aula, ele ensina sinais gestuais que representam dinâmicas que a música pode ter, mas ainda não são conhecidas por todos. Essa senhas dizem respeito a compassos, melodias, harmonias, velocidades, intensidades, gêneros, priorizações de um instrumento num tempo determinado, entre outros. Também existem certas liberdades de improvisação já trabalhadas anteriormente que são denominadas paletas (como as de cores) de temas musicais ou partituras.

Para entender, exercite a imaginação: o galpão representa uma tela de pintura; os sons, as cores; os músicos, os baldes de tinta e o regente, o pintor. Tudo comandado por uma certa padronização da improvisação. Jackson Pollock se intrigaria.

A primeira música, por exemplo, iniciou-se com uma sequência de teclado mais sóbrio. Depois os outros vão seguindo o ritmo de acordo com os comandos do maestro da banda. Entram o baixo, a guitarra, a bateria e a percussão procurando sempre manter uma unidade dentro desse novo ritmo agora descoberto. Não há fórmulas preestabelecidas, o que existem são padrões usados pelo regente que servem de guia dos músicos de forma a todos improvisarem, sim, mas em direção a um mesmo caminho.

Durante o ensaio pretende-se atingir essa confluência de variáveis rítmicas, melódicas e harmônicas. O regente tem a incunbência de decidir quando frear a música, acelerá-la, deixá-la mais low-fi, aumentar o volume ou escolher um instrumento que comandará o assunto da canção criada. As viradas são improvisadas pelo regente, ali mesmo, e os músicos tem de estar atentos para olhar o regente, entender a senha emitida e entrar em sincronização com os outros mpusicos. Depois de mais da metade do ensaio podia-se ouvir reclamações do tipo: "porra, não sei se eu olho pra você ou se toco". Mas essa é a graça, uma orquestra em forma de banda.

As três horas de ensaio transitaram pelo jazz, soul, maracatu, música gospel (Whoopi Goldberg teria inveja), samba e drum 'n' bass. E em um momento especial, daqueles de se arrepiar os pelos, a banda entrou em sintonia. O ritmo acelerando aos poucos e o volume crescendo. Podia-se sentir no rosto de cada um dos músicos a concentração, uns mordendo os lábios, outros com os olhos fechados, até entrar numa torrente de abstração. O galpão deixava entrar uma luz alaranjada pelo teto que rebatia exatamente na roda formada pela banda, a poeira subia e se desenhava, de acordo com os movimentos do regente, algo com cor. Os elementos de cada instrumento, ao fluírem entre si, numa mesma toada, produziam (para cada um) um tipo de tonalidade e de sentimento. Eu, alheio a catarse músico-pictórica, olhava ao redor e me perguntava o que aquela moça negra, bonita, de blusinha rosa-choque que cuida do galpão, estaria sentindo quando escutava esses sons logo de manhã. Mas me respondeu: justo neste momento de sublimação musical ela estava pegando uma mangueira no fundo do galpão e, séria, parou por pouco menos de dez segundos para ouvir o que estava acontecendo. E, nesses segundos, a blusa rosa-choque ficou ainda mais rosa-choque.

"Ficou bem doida essa, né?!". Rindo, disseram dois depois do fim da sessão.